Comemora-se hoje o Dia Mundial da Visão – “Há ainda uma luta que é preciso combater como por exemplo em relação à diabetes ou ao glaucoma”.
Comemora-se hoje o Dia Mundial da Visão.
A data, criada pela Organização Mundial da Saúde é celebrada anualmente na segunda quinta-feira de outubro, e pretende chamar a atenção para os perigos à visão, como a cegueira e a deficiência visual.
Neste dia realizam-se rastreios visuais gratuitos em todas as lojas óticas acreditadas, assim como conferências, caminhadas, angariações de fundos para o pagamento operações dispendiosas, concursos de fotografia, entre outras atividades. O objetivo geral destas iniciativas do Dia Mundial da Visão é prevenir problemas visuais, proteger e tratar da visão das pessoas.
A propósito do Dia Mundial da Visão entrevista com o Dr. Filipe Henriques, coordenador de oftalmologia do Hospital Misericórdia da Mealhada.
Jornal da Mealhada- Acha que hoje e dia as pessoas estão suficientemente sensibilizadas para os problemas de visão?
Filipe Henriques – Penso que a preocupação e o grau de exigência relativamente à visão têm vindo a acompanhar o processo de amadurecimento da civilização moderna. As conquistas das ultimas centenas de anos, na luta contra a fome e as doenças infeciosas levaram a um aumento da sobrevivência bem como da saúde em geral. O ser humano recentrou assim as suas prioridades focando-se na qualidade de vida e no bem-estar.
JM- De que modo é que isso afeta o grau de exigência dos pacientes?
FH- A mudança de paradigma assenta em dois pilares. Por um lado, a população está mais informada. A internet e os outros meios audiovisuais são agora parte do dia a dia e contribuem para a qualidade de vida. Por outro lado, a medicina tem sofrido avanços extraordinários. Hoje em dia é possível deixar de ser míope em 30 minutos com uma cirurgia envolvendo tecnologia laser sem qualquer desconforto associado. Em meia hora o paciente deixa de usar os óculos que sempre o incomodaram.
Nesse mesmo período de tempo consegue-se colocar uma pessoa cega a ver, removendo-lhe a catarata que cresceu demais. Podemos tratar doenças de retina que levavam à cegueira/baixa visão e que há bem pouco tempo não tinham tratamento. São exemplo disso os descolamentos de retina e os buracos maculares. A propósito da cirurgia de retina, hoje em dia, manipulamos com segurança estruturas da retina 40 vezes mais finas que um cabelo humano. Isto tudo produz um clima de exigência que obviamente deve ser moderado pelo médico de modo a não se criarem expectativas irrealistas no doente.
JM- Então acha que não é necessário apostar em informação?
FH- Pelo contrário. Apesar de vivermos numa sociedade de comunicação é fácil criar falsos rumores ou falsas expectativas quanto às reais capacidades da medicina. Por outro lado, além da desinformação existe também excesso de informação. Somos diariamente bombardeados com a “necessidade” de se fazer um sem fim de rastreios para deteção das mais variadas doenças ou fatores de risco. Torna-se difícil distinguir entre o essencial e o acessório. A minha recomendação é seguir as orientações do medico assistente, normalmente o médico de família. Relativamente às doenças que afetam a visão há ainda uma luta que é preciso combater como por exemplo em relação à diabetes ou ao glaucoma.
JM- Porque salientou essas duas doenças?
FH- Porque o diagnóstico e o tratamento precoces destas doenças, pela sua prevalência e impacto na função visual, têm um enorme reflexo na redução dos custos individuais e da sociedade associados à doença. Infelizmente continuam a aparecer nas consultas doentes com glaucoma e com retinopatia diabética avançadas. Os custos do tratamento desta última são altíssimos e podiam ser minimizados caso os doentes fizessem um controlo precoce da doença. Do ponto de vista do individuo também há consequências, sendo maior o risco de cegueira quanto mais tarde se iniciar o tratamento. Relativamente ao glaucoma, nunca é demais salientar que é uma doença silenciosa e que só por si, justifica uma ida regular ao oftalmologista.
JM- Tem algum caso de desinformação que possa contar?
FH- Uma vez tive um paciente que veio à consulta porque queria que eu lhe fizesse uma operação igual à que lhe tinham feito há uns anos. Segundo ele, a operação consistia em remover o olho da órbita, “arranjá-lo” em cima de uma mesa e voltar a colocá-lo no sítio como novo.
Eu expliquei-lhe que esse tipo de intervenção não existia, que para isso era preciso seccionar o nervo ótico, e que a visão não podia recuperar depois de uma secção do nervo, mas foi impossível demovê-lo daquela ideia. Por vezes as crenças estão tão enraizadas que é difícil combatê-las com argumentos lógicos.
JM- Como faz para gerir as expectativas de um doente relativamente a uma cirurgia?
FH- Acima de tudo, tento entender a pessoa que está diante de mim. Não é um olho, nem uma retina, nem uma catarata que vão ser operadas. É uma pessoa. É um paciente numa situação de stress, que muitas vezes tem dificuldade em entender o que se está a passar. A decisão de avançar para a cirurgia é sempre do doente. Para uma decisão esclarecida é importante explicar com calma os riscos e os benefícios das varias opções cirúrgicas tal como os da opção de não operar.
JM- É sempre fácil chegar a uma decisão?
FH- Não. E por isso é necessário explicar a situação as vezes que forem necessárias. Obviamente que se se tratar de um olho “cego” por apresentar um descolamento de retina, o esclarecimento é simples:
“se for operado tem cerca de 95% de probabilidade de voltar a ver, se não for, ficará cego do olho”. Nesta situação a decisão é rápida e sem hesitações. Mas há outros casos em que temos que enquadrar a patologia no contexto sistémico e sociofamiliar do paciente. Uma membrana da retina numa jovem ativa de 35 anos e numa senhora de 90 anos com alzheimer avançado não têm a mesma necessidade de cirurgia. É por isso que devemos adequar a nossa conversa ao paciente que temos à frente e não simplesmente ao olho.
JM- Ainda encontra motivos para sorrir durante o trabalho?
FH- É verdade que a rotina acaba por ser inimiga do entusiasmo. Quando nos habituamos a ver as pessoas satisfeitas com a visão que recuperaram, acabamos por desvalorizar. Passamos a dar mais valor às exceções. Deixamo-nos preencher pelas pessoas que, por uma razão ou por outra, permanecem com queixas e que queremos, a todo o custo que fiquem bem. De qualquer forma, continuo a entusiasmar-me com coisas tão simples como saber que uma criança está a ver melhor depois de começar a usar os óculos que lhe prescrevi ou saber que um colírio que prescrevi para o glaucoma está a resultar. Nem todo o entusiasmo resulta de cirurgias complexas ou de casos desesperados.
JM- Como costuma lidar com os casos difíceis?
FH- Com muito pragmatismo. Por vezes são doentes que já foram submetidos a cirurgias prévias que não resultaram ou são doentes com olhos únicos ou são olhos que sofreram traumatismos graves. Os doentes estão muito ansiosos e não sabem se vão ficar bem com a cirurgia. A verdade é que nesses casos complexos é difícil apresentar estatísticas porque o olho tem problemas muito peculiares. Só depois de “abrir” o olho é que podemos ter uma noção do potencial de sucesso da cirurgia. Nessas situações, explico o que pretendo fazer e prometo que vou fazer o melhor que sei.
JM- Os doentes ainda o surpreendem?
FH- Uma das coisas que mais me espanta é a variabilidade da resiliência inter-individual. Isto é, por um lado, há doentes que têm uma sensibilidade extrema e que recorrem ao oftalmologista porque têm uma “picada” ou um “ardor” ocular. Por outro lado, há doentes que só recorrem ao oftalmologista em situações extremas, (e são estes que me surpreendem mais). Por exemplo, uma vez tive um doente que chegou ao consultório com óculos “fundo de garrafa”. Nada de estranho até aqui. Queria renovar a carta e tinha vindo de mota. Quando lhe mostrei umas bolas coloridas do tamanho de bolas de bilhar para saber se identificava as cores, ele não conseguiu ver as bolas. Ele tinha uma visão inferior a 1%! E tinha vindo de mota. Nessas situações, o argumento mais frequente é que só conduzem em estradas conhecidas perto de casa. A perda progressiva e lenta da função visual em determinadas pessoas ativa mecanismos compensatórios e estes só recorrem ao médico quando a situação é terminal. Mas também há doentes que têm uma baixa súbita da visão e que não valorizam.
JM- Como se pode prevenir essas situações?
FH- As pessoas que não valorizam a sua saúde ou, pura simplesmente, que não gostam de ir ao médico vão continuar a existir. O que temos que fazer é sensibilizar as pessoas em geral para a necessidade de recorrerem preventivamente ao seu oftalmologista quando tiverem sintomas ou sinais de alerta. Há grupos de risco que devem ser observados regularmente como os portadores de lentes de contacto, os diabéticos, pessoas com doenças oftalmológicas conhecidas e as pessoas com patologia oftalmológica relevante na família. A regra básica deve ser, na dúvida, consultar o seu médico.
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